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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

478 - OS JOGADORES DE XADREZ

Os Jogadores de Xadrez
Título Original: Shatranj Ke Khiladi
 
Enquanto a história decorre inexoravelmente, transformando a Índia numa colónia britânica, dominada pela Companhia das Índias, dois indianos aristocratas passam o seu tempo a jogar xadrez. Indiferentes à crise política, ao abandono a que as mulheres os votam, à proximidade de uma guerra.



 
Direção: Satyajit Ray
Richard Attenborough



Não é um filme fácil de se ver, de forma alguma, este Os Jogadores do Fracasso, um dos últimos da carreira prestigiosa do grande Satyajit Ray (1921-1992), o maior cineasta indiano do século XX. Muito ao contrário. Mas é poderoso, imponente. Tem toda a marca de um grande diretor.

Tento explicar o que quis dizer com a primeira afirmação. Já não é nada fácil comprender muitas das situações apresentadas em filmes indianos, mesmo quando a ação se passa mais perto de nossos dias, e em ambientes urbanos, porque a gente conhece muito pouco dos valores, dos símbolos, dos signos daquela sociedade. Os Jogadores do Fracasso (o título em inglês, para o mercado internacional, foi The Chess Players, os jogadores de xadrez) se passa em um reino da Índia então colônia britânica, mais propriamente colônia de uma empresa britânica, a East India Company, em 1856. Ah, sim: e o reino em questão sequer é hinduísta, e sim de maioria muçulmana.

E o diretor Satyajit Ray escolheu um tom de fábula, de sátira, para contar sua história passada nesse reino tão distante de nós, geográfica e temporalmente.

Coloca em discussão temas complexos, delicados, difíceis, como o choque cultural, a responsabilidade e a irresponsabilidade dos governantes, a apatia das elites, o alheamento dos nobres, dos ricos, seu distanciamento total da realidade social de um povo e um país submetido ao jugo de uma potência colonialista. E usa, para isso, símbolos, signos, valores, formas de expressão que nós, ocidentais, absolutamente não dominamos, não compreendemos.

O monarca do lugar, cuja capital é a cidade de Lucknow, o marajá, o nababo, o rei, Nawab Wazed Ali Shah (Amjad Khan), é ao mesmo tempo um homem bom e um pobre diabo. Não foi talhado para o papel que lhe deram na sociedade; é absolutamente inapetente para tudo que tem relação com administração, governo, tomada de decisão. É um poeta, um compositor – está no lugar errado, na hora errada. O representante da East India Company e de sua Majestade a Rainha Victoria, o general Outram (interpretado por Richard Attenborough), por sua vez, é um supremacista, um etnocêntrico, um inglês que jamais deveria ter botado a cabeça para fora do clubes dos ricos londrinos de então – não compreende nada que seja diferente de seu mundo, de seus valores, só é capaz de enxergar o mundo a partir de seu próprio umbigo. Tem um desprezo profundo pelo rei com quem tem que negociar.

Os personagens que acabam dominando a fábula contada por Ray, no entanto, são dois nobres, Mirza (Sanjeev Kumar) e Mir (Saeed Jaffrey). Descobriram o xadrez, estão apaixonados pelo jogo de xadrez, jogam loucamente, alucinadamente, o dia inteiro. Bem no início do filme, depois dos créditos iniciais em que há imagens belíssimas em close-up das peças dos jogos e das mãos cheias de anéis dos dois jogadores movendo-as, um narrador com voz em off nos situa no tempo e no espaço, até dizer uma frase assim: “Poderíamos perguntar se eles não trabalham, pois passam todo o dia a jogar. Não, eles não trabalham: são nobres.”

Mirza e Mir dedicam-se tanto ao xadrez (enquanto fumam seus narguilês e comem o que os criados lhes trazem) que um deles é incapaz de perceber que o sobrinho que tenta se esconder debaixo de sua própria cama quando ele aparece de repente no quarto está comendo a sua mulher, e não fugindo dos guardas do rei, explicação besta que apresenta ao ser flagrado.

Satyajit Ray, um artista profundamente humanista, sempre preocupado com as grandes questões morais – alguns de seus filmes enfocam basicamente a questão da corrupção, do dinheiro sujo, por exemplo – devia certamente estar se referindo à incompetência das elites indianas em lidar com os problemas do país, na época em que o filme foi feito, 1977. Os patéticos personagens de Mirza e Mir seguramente são o espelho de lideranças da Índia da época – mas o que conhecemos da Índia de 1977 para saber a quem ele estava se referindo?

Com essa pergunta, não estou pretendendo de forma alguma questionar a qualidade do filme. Só tento explicitar como é difícil para nós, brasileiros comuns, que conhecemos pouco sobre a Índia, esse país tão absolutamente complexo, compreender a obra de Ray em toda a sua grandeza.

E que grandeza. Que maravilhoso cineasta é esse senhor, que dirige, escreve, dirige a fotografia e ainda compõe a trilha sonora – tudo com maestria.

Ray apresenta longas – e belíssimas – seqüências em que há cantos e danças. É uma tradição do cinema indiano as seqüências de cantos e danças; a Índia, é sempre bom lembrar, é o maior produtor mundial de filmes. Só para dar um exemplo: em 2006, a Índia produziu 930 filmes. Os Estados Unidos, o grande Império, que atrai cineastas do mundo inteiro, é o segundo colocado, com 800 filmes. Entre o segundo e o terceiro colocados há um abismo – o Japão teve 350 produções. O planeta China, onde vive um de cada cinco terráqueos, fez 260 filmes. E a França, que se julga, com todo o direito, o berço do cinema, assim como se julga, sem direito algum, o berço de tudo o que há de bom na civilização, fez 203.


Fonte
http://cinema.sapo.pt/filme/shatranj-ke-khiladi/

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